"...é concebível que acabemos descobrindo mais e não menos mulheres autistas, assim que examinarmos melhor; talvez a célebre vantagem feminina na linguagem e inteligência social proteja algumas mulheres, nascidas com a herança genética do autismo, excluindo-as da categoria diagnosticável de "autismo de alto funcionamento" e incluindo-as na forma disfarçada e não manifesta do distúrbio.(...)" (John J. Ratey e Catherine Johnson, no livro "Síndromes Silenciosas", p.235 Ed. Objetiva)
"A alma dos diferentes é feita de uma luz além. Sua estrela tem moradas deslumbrantes que eles guardam para os poucos capazes de os sentir e entender. Nessas moradas estão tesouros da ternura humana dos quais só os diferentes são capazes. Não mexa com o amor de um diferente. A menos que você seja suficientemente forte para suportá-lo depois". (Arthur da Távola)

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quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Novamente em busca de tratamento médico para as seqüelas de mais de três décadas sem diagnóstico!! E um depoimento emocionante de uma leitora!!

Olá!


Ontem eu fui novamente consultar o médico do posto de saúde(SUS) para continuar meu tratamento para depressão e dor crônica que faço com um remédio chamado Sertralina, e faço uso também de anti-inflamatórios.


A surpresa que eu tive é que o médico não atendia mais e a médica que assumiu a vaga foi muito atenciosa, e me encaminhou para o Centro de atendimento psicossocial- CAPS, para que eu tenha acesso a tratamento específico para depressão crônica(endógena), que é a que eu tenho, este tipo de depressão é de origem genética, eu tenho outros casos na família e eu não consigo me livrar dela!!


A médica me orientou sobre o meu sono, pois eu passo o dia todo cansada e sonolenta e a noite não consigo dormir, estou dormindo pouco e isso piora tudo.


Bom, eu não falei para ela sobre a descoberta deste GIGANTESCO traço autístico que eu possuo, mas ela me disse que o terapeuta ocupacional do CAPS poderá me dar dicas de como lidar com a minha situação.


Ontem mesmo fui ao local para marcar minha triagem, confesso que depois das inúmeras tentativas o que me restou foi quase nenhuma expectativa, mas depois da minha leitura do livro "Sindromes Silenciosas" de Jonh J. Ratey e  Caterine Johnson da Ed. objetiva fica difícil não buscar tratamento médico, por mim mesma e pela minha família. 


Mas o que me impulsiona e ao mesmo tempo me causa desespero é o estado de praticamente "morta-viva" em que eu me encontro, é uma mistura de isolamento total, com exceção da internet, o contato que eu tenho com o mundo real é praticamente o que se faz necessário para a sobrevivência e os cuidados com meus filhos.


Estes dias eu recebi um email surpreendente de uma leitora, eu me identifiquei tanto com o relato que pedi sua autorização para publicá-lo aqui no blog, pois como foi bom para ela ler meus relatos, foi ótimo poder conhecer alguém com uma vivência tão parecida, não sei explicar o porque, mas dá uma sensação de alívio saber que não estou só nesta situação.


Eis o relato:



olá, grace, passei as últimas horas lendo seu blog e gostaria de agradecer por ele. me identifiquei com muitas, muitas coisas que você escreveu.

sempre me senti estranha, deslocada, sempre fui chamada maluquinha, mau caráter, desequilibrada e arrogante. tenho pensamentos suicidas desde os 5 anos de idade, sempre senti uma tristeza, angústia e isolamento profundo. tenho 30 anos, moro no rio de janeiro e estou no meu segundo tratamento psiquiátrico por causa da depressão. apesar de ter sido diagnosticada como depressiva sempre senti que meu problema era além, apesar de não ter idéia do que era essa outra coisa.

sexta-feira passada, por acaso, encontrei um artigo na internet sobre síndrome de asperger e me vi em todos os sintomas. foi como um luz caísse na  minha vida e tudo aquilo que eu não conseguia entender finalmente teve uma explicação. vim de uma família extremamente disfuncional, meu pai certamente tem traços autistas bem definidos, minha mãe e meus irmãos são claramente depressivos, apesar de só eu ir ao psiquiatra e considerada a "louca" da família.

atualmente, meu maior sacrifício é acordar todo dia e ir ao trabalho. sou redatora de uma agência publicitária, não me faltam criatividade nem habilidade com palavras. estou lá há três meses e já sonho com o dia da minha demissão. conviver 9 horas por dia com pessoas que não significam nada para mim é um tormento. sempre que posso, fujo na hora do almoço só para ficar sozinha. apesar da qualidade do meu trabalho ser impecável, já tive a atenção chamada pelo gerente da agência que disse que sou "antissocial e que minha atitude pode atrapalhar a coesão do grupo". por mim, sentaria, faria meu trabalho e iria para casa. interagir, fazer elogios e me inserir nas conversas "de elevador" daquelas pessoas é um sofrimento sem fim para mim.

nas situações da vida em que preciso ser simpática, eu sou. uso minha habilidade com palavras, sorrio e conquisto as pessoas. mas sinto que estou representando e volta e meia dá um curto-circuito e eu fecho a cara e vou embora. consegui construir algumas amizades, mas é esforço para encontrá-los em eventos sociais. converso pelo msn e pegar o telefone e ligar é um horror. aliás, tenho pavor de telefone, deixo sempre na secretária eletrônica para não precisar atender. celular para mim, só pra usar o sms.

claro que namoros também sempre foram um problema. percebo que tenho dois níveis de entendimento. o racional e o outro. racionalmente, entendo quando gostam de mim, que se interessam, mas não acredito. não consigo explicar isso, não entendem como posso sentir duas coisas tão diferentes ao mesmo tempo, mas sinto. nunca digo quando gosto de alguém, simplesmente acho desnecessário e não entendo como alguém pode ser ofender com isso. de maneira alguma me sinto indiferente, mas agora olhando para trás vejo que acham que sou assim.

descobri que não olho no olhos das pessoas. nunca tinha pensado nisso, quando li que este era um sintoma, comecei a lembrar que meus poucos ex namorados sempre diziam "olha no meu olho" e eu achava que era brincadeira ou frescura deles.

fiz psicoterapia a vida inteira, minha última foi com uma psicóloga freudiana que fiquei dos 19 aos 28 anos e ela nunca descobriu meu autismo. um dia me dei alta porque não aguentava mais ouvir que eu precisava me adaptar ao mundo, enfrentar a vida, deixar de ser arrogante, etc, etc. todas as "críticas" que ela me fazia, agora me parecem claramente sintomas do autismo.
hoje me sinto com um peso e um alívio enorme ao mesmo tempo. é como se eu sentisse uma dor extrema sem saber onde, até que fui num médico e ele dissesse que eu tenho um braço quebrado e posso usar um gesso para ser normal. nunca pensei que todas minhas "esquisitices" poderiam ser classificadas como uma síndrome, mas por outro lado sinto um medo enorme. sou autista e o que vou fazer da minha vida? será que vou continuar a vida inteira fingindo ser legal no trabalho, aturando tudo que odeio até me aposentar? será que algum dia vou conseguir mergulhar num relacionamento? será que vou conseguir aprender as regras sociais de convivência?

meu maior alívio é que não estou sozinha nisso e que agora posso aprender a corrigir "meus defeitos" ou pelo menos, compreende-los melhor."


Agradeço imensamente pela autorização para publicar este relato, a oportunidade de conhecer pessoas como
você fazem a vida valer a pena!!Que Deus te dê muita coragem e paz!!


Até a próxima!!
Grace Caroline.
P.S.: Preciso deixar aqui um recado para minha amiga, que já considero irmã, a Karla Coelho, leitora e colaboradora fiel deste blog, pois eu sei que ela se preocupa muito com autistas que fazem tratamento com medicação. A minha condição melhorou com os meus cuidados com a alimentação, mas segundo as orientações médicas eu não posso mais adiar o tratamento com medicação.
Beijo Karla!!

5 comentários:

  1. É claro que você não está só estando autista. Primeiro que o mundo tem milhares de autistas e a cada minuto nasce mais um monte. Imagine o espectro autista... de asperger a autismo severo... imagine agora as pessoas com TDAH, mais milhares, imagine agora que ninguém é igual a ninguém (mesmo tendo uma irmã gêmea, como eu, hahaha) então ninguém está só. Falei no blog do seu filho: somos todos diferentes com alguma coisa em comum. Sim, é muito bom achar pessoas que possuem características em comum com a gente mas é muito produtivo também conviver com pessoas diferentes da gente. É nessa hora que a gente evolui. Conviver com pessoas parecidas é fácil demais por isso devemos sair da zona de conforto e tentar melhorar sempre, por mais difícil que isso seja.

    Eu não sou autista mas tenho TDAH (acho que severo), tenho uma irmã gêmea com TDAH, irmã e mãe com DDA (pouca hiperatividade), pai TDAH severo e um irmão autista. Acha que viver rodeada de pessoas com os mesmos distúrbios que eu é fácil? Não. Engraçado que mesmo tendo MUITO em comum com eles, a gente briga, discute e grita um com o outro. Tô escrevendo isso porque se existisse um mundo só com pessoas do espectro autista não daria certo. Haveria discordâncias. E por que no mundo a gente encontra pessoas com distúrbios diferentes, feficiências diferentes? Porque algumas pessoas vêm nesse mundo pra ajudar outras pessoas a crescer, a despir de preconceitos, a aceitar o próximo como ele É. Digo isso porque eu estudava o TDAH antes do Lu nascer mas não levava essa hipótese tão a sério. Quando ganhei meu irmão, comecei a pesquisar, a conhecer e entender muitas coisas e tudo se encaixava. Aí eu acreditei que aquela hipótese era verdade. Que tudo que sofri por achar que era burra e incompetente tinha nome. Que a minha eletricidade e os roxos que eu ganhava por ser desastrada faziam parte de um distúrbio. Quando ganhei meu irmão eu aprendi a não julgar o próximo porque é muito ruim ser julgado, aprendi a usar melhor as palavras, aprendi que uma criança dando birra na rua pode não ser falta de educação e sim crise... e etc etc.

    Falei isso tudo mas eu entendi o seu sentimento quanto a não estar só... (Mas quis dar um puxão de orelha pra todas nós querermos viver esse mundo, mesmo com nossas dificuldades!) dá realmente um alívio ver que outras pessoas passaram (ou passam)justamente o que passamos. Quando o Lu foi diagnosticado eu li milhaes de depimentos em blogs pra saber os sentimentos das pessoas e como elas estavam fazendo para ajudar a criança. No blog do Lu tem uma parte de depoimentos porém lá procuramos colocar depoimentos com finais esperançosos, com soluções, depimentos mostrando que o autismo é tratável. Depoimentos ajudam demais pois a linguagem é fácil e vc sabe que é uma história vedadeira como a sua.

    Como tenho muitas características autísticas, me identifiquei muito com o depoimento acima. Sou publicitária tbm, rs. Quando eu penso que muitos TDAHs e muitos autistas morrerão sem diagnótico, eu fico triste. Os profissionais não estão preparados para diagnosticar ninguém, em nenhuma idade (salvo alguns). Ainda bem que há blogs como o seu, de autistas adultos. Ainda bem que vc abriu sua identidade, ainda bem que Deus te deu uma filhota autista. A leitra do depimento de hoje tem duas notícias boas: 1: ela já sabe o seu diagnóstico e 2: autismo é tratável. Melhore a alimentação, procure um ortomolecular se tiver condições e equilibre seu corpo, tome florais de Bach para medo, etc, tente ser mais sociável explicando com educação aos outros o que vc gosta e o que vc não gosta. Faça reuniões íntimas na sua casa, para poucas pessoas, isso vai ajudar você a começar a se socializar melhor e tirar a idéia dos outros de que é anti-social. Leia livros e estude bastante o autismo. "Olhe nos meus olhos" é um livro de um cara que foi diagnosticado aos 40 anos. Se tiver algum problema intestinal ou muita gripe, rinite, etc, faça a dieta SGSC, tome o suco verde.

    Beijos

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  2. Meu coment não estava sendo aceio por ser grande demais (falo damsi, aff)... o restante:

    A internet me deixa tão feliz... que invento perfeito né? perfeito não é porque muitas pessoas a usam para o lado negativo mas quem sabe usar a rede, se dá bem. Eu tinha certeza absoluta que você ia ajudar muita gente com esse blog mas eu tinha mais certeza ainda que vc ia se ajudar muito. Aqui vc desabafa, fala dos seus problemas e não se sente só, aqui você faz companhia e sente a companhia de pessoas que estão a km de distância... louco isso né?

    Grace, eu não gosto de remédios mas respeito muito quem toma. Acho que algumas pessoas PRECISAM de remédio mas acho que ninguém pode ser dependente de química pro resto da vida. Eu não sou médica e o profissional sabe o que faz. Só acho que você deve tomar tbm florais de Bach e fazer suco verde já que a maçã é antioxidante!

    Talvez meu comentário de anterior tenha ficado confuso, só eu sei o tanto de coisa que passa pela minha cabeça ao escrever um comentário, hahaha.

    Beijos!

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  3. Olá Karla,
    Muito obrigada por vc existir nas nossas vidas!
    Sua mensagem é enriquecedora!!
    Beijo!

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  4. Oi Grace... adorei o post e tenho que confessar uma coisa: meu TDAH me impediu de dar a minha opinião mais cedo... eu entrei diversas vezes no seu blog mas ao ver esse texto enorme eu desanimava e pensava: ai, tenho que voltar com mais calma... e fiz isso mais de 3 vezes acredita? Isso é ter TDAH... é impaciencia com coisas que podem me fazer muito bem... é um desanimo que vem não sei de onde pricnipalmente quando estou quase chagando lá... nós que temos esse disturbio amamos o desafio mas quando estamos perto de conseguir o tesão vai embora... Sou agitada, falo demais, não tenho foco, gosto de trabalhar sobre pressão, sou distraida e as vezes nem tenho vontade de me levantar pra ir trabalhar... e as vezes quando levanto fico muito feliz e grata por ter tido força de vontade!
    O pior de ser diferente da maioria das pessoas a nossa volta é a falta de compreensão e o préconcecito ( que como a propria palava diz, é um pre julgamento e uma não aceitação antes de conhecer).
    Viver não é facil pois essa escola nos traz muitas provas e temos que ser fortes para passar por elas e tirar aprendizado de tudo...
    não minha amiga, você não está sozinha.. pode ter certeza! A vida não é fácil pra ninguém... nem pra mim, nem pra você e nem pro Sílvio Santos que é rico e nos passa a imagem de que pode tudo...
    A vida foi feita para nos desafiar seja por meios do modo social, seja por meios do modo afetivo ou financeiro...
    Que bom que você está buscando se conhecer e esta partilhando a sua experiencia conosco, servindo a cada dia de estimulo para nossa caminhada!
    Que bom que as pessoas boas estao aparecendo no seu caminho e que você está tendo um tratamento...
    Se os médicos não têm coragem de diagnosticar as pessoas (porque acho que mais que conhecimento, falta coragem), vamos a luta pesquisar a forma de agir para melhorar nossa qualidade de vida cada dia mais!
    Que bom que está se alimentando melhor... :)
    Vença essa depressão que é pequena perante sua força de lutar e ajude quantas pessoas puder... porque esse é nosso maior objetivo de vida: ser melhor para melhorar o próximo... e rezo todos os dias e me coloco a disposição de Deus para que eu possa alcançar muitos autistas e pessoas que estão dentro do que posso fazer para melhorar sua vida!
    Beijos e obrigada por nos ensinar tanto e nos transmitir tanta força!
    Conto com você para um mundo melhor!

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  5. Olá amiga, ano pasado trabalhei com autistas, dando aula de arte e música. Me interesso muito pela área.
    Adorei seu blog e já estou seguindo!
    Beijos!
    http://myblogsaborear.blogspot.com

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Autismo de alto funcionamento:

"Eu gostaria de acentuar que chamar este transtorno de autismo de alto funcionamento, é inadequado porque o termo sugere que o autismo é de alto funcionamento, que o autismo é leve, quando na verdade o que você está querendo é denominar uma pessoa de alto funcionamento com autismo.

Então, essa pessoa pode ter um bom QI ou uma boa compreensão verbal ou uma boa expressão verbal, mas seu autismo é normalmente tão grave quanto o de uma pessoa descrita com autismo de baixo funcionamento.

Então, por favor: usem alto funcionamento para a pessoa, não para o autismo, de maneira a permitir uma compreensão mais profunda de quão grave o autismo pode ser, mesmo para alguém com Síndrome de Asperger..."

(Dr. Christopher Gillberg, em out/2005 no auditório do InCor em SP)

Dr. Simon Baron-Cohen, diz no seu livro "Diferença essencial: a verdade sobre o cérebro de homens e mulheres.":

"...Dirijo uma clínica em Cambridge para adultos com suspeita de serem portadores da síndome de Asperger. Esses indivíduos não tiveram os problemas detectados na família nem na escola enquanto ainda eram crianças.

Assim, atravessaram a infância e a adolescência aos trancos e barrancos, e chegaram à idade adulta acumulando dificuldades, até serem encaminhados à nossa clínica, desesperados pela falta de integração, por se sentirem diferentes.

Na maioria dos casos, esses paciente sofrem também de depressão clínica, já que não encontram um ambiente, em termos de trabalho e de companheiro(a), que os aceite em sua diferença. Querem ser eles mesmos, mas são forçados a "vestir" um personagem, tentando desesperadamente não ofender, dizendo ou fazendo a coisa errada, e ainda assim, sem saber quando vão receber uma reação negativa ou ser considerados" seres estranhos".

Muitos deles se esforçam em administrar um enorme conjunto de regras relativas ao comportamento em cada situação, e consultam de minuto a minuto uma espécie de tabela mental, buscando o que dizer e o que fazer. É como se tentassem escrever um manual de interação social baseado em regras de causa e efeito, ou como se quisessem sistematizar o comportamento social, quando a abordagem natural à socialização deve ser através da empatia.

Imaginem um livro bem grosso de etiqueta sobre como agir em jantares,...mas escrito em detalhes, para cobrir todas as eventualidades do discurso social.

Claro que é impossível aprender tudo, e embora alguns desses indivíduos brilhantemente quase consigam, acabam fisicamente exaustos. Quando chegam em casa depois do trabalho, onde fingiram interagir normalmente com os colegas, a última coisa que querem é socializar. Só pensam em fechar a porta do mundo e dizer as palavras ou praticar as ações que tiveram de reprimir o dia todo.

Gostariam que os outros dissessem o que pensam e que eles pudessem fazer o mesmo; não entendem porque não podem.

É difícil para eles compreender como uma palavra sincera pode ofender ou causar problemas sociais."...

POEMA EM LINHA RETA

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)


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